segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O Direito e a construção da cidadania das pessoas trans: a constitucionalização e o respeito às normas internacionais de direitos humanos

por Frederico Oliveira
trecho de artigo publicado em 06/10/2014 (adaptado)


No campo do Direito, sem discutir qual corrente é majoritária, mesmo porque não é esse o ponto da minha discussão, a questão da cidadania das pessoas travestis e transexuais é controvertida. Primeiramente porque não há lei que retire os obstáculos do senso comum e da compreensão ultrapassada da medicina, obstáculos que entendo ser altamente prejudiciais por negarem o direito natural à identidade de gênero. 

A Lei de Registro Públicos, instituída numa visão limitada de imutabilidade do prenome, é quase uma norma de proibição de retificação do registro civil. 

A afirmação de direitos especifícos às minorias, no caso as travestis e transexuais, não significa dar ou conceder privilégios, mas reconhecê-las em sua plenitude para que possam ser retiradas da condição de rebaixamento, fruto de uma moral acrítica e de uma tradição histórica divorciada da realidade, fundada na ideia de dominação. Para que as minorias possam ser reconhecidas, é preciso ser fomentada a conciliação da distribuição de direitos com o reconhecimento da identidade cultural ou social dos indivíduos que a elas integram. [1]

A falta de reconhecimento promove a depreciação das identidades que ficam vulneráveis à manipulação das opiniões públicas e vitimadas pela opressão da maioria integrante do padrão socialmente imposto. Desse modo, para se colmatar uma justa distribuição de direitos é indispensável a promoção do reconhecimento dessas identidades para que essas minorias possam também exercer uma cidadania plena, livres do rebaixamento e da opressão dos padrões sociais que não se encaixam na realidade desses indivíduos. Isso ocorre, pois a válvula motora da condição de rebaixamento desses grupos foi construída com a propagação de uma cultura não reflexiva a respeito da pluralidade de identidades sociais e culturais que circunda a essência humana. 

Numa concepção de cidadania, não se admite a inferiorização de alguns em detrimento de outros, muito menos a falta de acesso a direitos tão essenciais ao exercício de uma ideal cidadania, calcada na fruição de direitos fundamentais. 

O sentido de uma democracia como regime político, deve ser fundado na cidadania para todos, como base para o exercício dos poderes constituídos pelo Estado, conciliando-se os princípios da liberdade, da igualdade, da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana. Um regime assim estabelecido impõe um olhar especial que possa corrigir as vulnerabilidades de certas pessoas que, por sua condição - aqui no caso de identidade de gênero - não tem garantida uma justa participação na distribuição dos direitos fundamentais.   

O reconhecimento e a apropriação da concepção de cidadania é de suma importância para uma justiça pautada na distribuição equitativa dos benefícios. As pessoas travestis e transexuais são estigmatizadas pela sociedade e tais estigmas são frutos da sedimentação de um padrão tradicional e histórico. 

As pessoas trans sofrem pela “usurpação negativa de um bem imaterial”, pois não há aceitação e respeito à sua condição diferente dos padrões convencionais estabelecidos pela sociedade. Por essa razão, cabe ao Direito equilibrar as distorções a fim de se promover o reconhecimento pleno da identidade de gênero dessas pessoas.[2]

Elas “precisam se saber reconhecid[a]os também em suas capacidades e propriedades particulares para estar em condições de autorrealização, el[a]es necessitam de uma estima social que só pode se dar na base de finalidades partilhadas em comum.[3]

No plano internacional de Direitos Humanos a compreensão a respeito da cidadania das pessoas LGBTs é orientada pelos Princípios de Yogyakarta que reputa a identidade de gênero como essencial para “a dignidade e humanidade de cada pessoa”.  

O referido documento integrante dos tratados internacionais em que o Brasil é signatário, estabelece como identidade de gênero “a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.” 

A orientação sexual e identidade de gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade.” (destaquei)

Além dessa interpretação, os Princípios de Yogyakarta determinam que os Estados-partes, como é o caso do Brasil deverão: 

“a) Garantir que todas as pessoas tenham capacidade jurídica em assuntos cíveis, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, assim como a oportunidade de exercer esta capacidade, inclusive direitos iguais para celebrar contratos, administrar, ter a posse, adquirir (inclusive por meio de herança), gerenciar, desfrutar e dispor de propriedade; b) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para respeitar plenamente e reconhecer legalmente a identidade de gênero autodefinida por cada pessoa; c) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para que existam procedimentos pelos quais todos os documentos de identidade emitidos pelo Estado que indiquem o sexo/gênero da pessoa – incluindo certificados de nascimento, passaportes, registros eleitorais e outros documentos – reflitam a profunda identidade de gênero autodefinida por cada pessoa; d) Assegurar que esses procedimentos sejam eficientes, justos e não-discriminatórios e que respeitem a dignidade e privacidade das pessoas; e) Garantir que mudanças em documentos de identidade sejam reconhecidas em todas as situações em que a identificação ou desagregação das pessoas por gênero seja exigida por lei ou por políticas públicas;” (destaquei) 

No dia 26/09, o Conselho de Direitos Humanos (29a Sessão) do sistema global (ONU), com participação efetiva do Estado Brasileiro, editou uma resolução expressando uma grave preocupação com os atos de violência e discriminação contra as pessoas LGBT, determinando ao Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH) o monitoramento dessa violência para orientar boas práticas para a sua superação.

A nossa ordem constitucional recepciona os tratados internacionais ratificados pelo Brasil no seu ambito doméstico (art. 5º, § 3º) - tal como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais - que nas questões de orientação sexual e identidade de gênero, devem serem interpretados à luz dos Princípios de Yogyakarta. As normas internacionais de direitos humanos, são reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com hierarquia supra-legal, atendendo e ampliando os direitos fundamentais consignados na Constituição Brasileira.

Dentre esses princípios temos, em primeiro lugar, a LIBERDADE, considerada pela auto-determinação do indivíduo e pela autonomia da vontade para dirigir a sua vida privada; a IGUALDADE e a DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA que consistem necessariamente “na eliminação de qualquer vestígio de discriminação até a extensão e ampliação dos direitos sociais previstos na Constituição” [4] 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento firmado no sentido de que:

“Para o [a] transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”, donde “afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto” (STJ, REsp n.o 1.008.398/SP, DJe de 18.11.2009)


Não bastasse isso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao tentar transversalizar o conhecimento a respeito de gênero e sexualidade, na I Jornada de Direito à Saúde, editou os seguintes enunciados:

Enunciado 42. Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil. 
Enunciado 43. É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização."

O direito à identidade integra os direitos da personalidade, tratando-se de direitos subjetivos inatos e absolutos aos quais não cabe a ninguém, muito menos ao Estado restringir. Esse direito independe, inclusive, de autorização, cabendo o reconhecimento da sociedade e ao Estado propiciar os meios para que as pessoas possam se apresentar da forma que melhor se identificam. 

Muitos estados e municípios, mesmo diante de suas limitaçoes, (pois cabe à União legislar sobre direito civil), já garantem o reconhecimento à identidade das pessoas trans pelo denominado NOME SOCIAL que aproxima os documentos dessas pessoas à sua realidade de vida em sociedade. Esse reconhecimento também vem sendo estendido às escolas e universidades públicas. 

Infelizmente quando o Judiciário nega direitos das pessoas trans, ele o faz na grande maioria das vezes sob a justificativa da MEDICINA ou de lacuna da lei. Em todas essas hipóteses, o faz contrariando a nossa ordem constituicional que garante cidadania plena para todos indistintamente. 

É preciso, pois promover a devida constituicionalização do direito em observância à nossa ordem convencional (dos tratados internacionais de direitos humanos) e de direitos fundamentais, garantindo-se, pois, a ideal força normativa dos princípios constitucionais de eficácia plena e de aplicação imediata (art. 5º, § 1º) que, obrigatoriamente devem preencher a lacuna legislativa para a concretização da dignidade das pessoas transexuais. 

Cabe nesse sentido, romper com as metologias interpretativas dogmáticas que se colocam como obstáculo para a fruição plena dos direitos fundamentais. Para isso, é necessária a utilização de uma metodologia apta a concretizar os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade para devolver humanidade às pessoas travestis e transexuais.

O Direito no Brasil não vem fazendo o esforço para a transversalização dos estudos mais recentes da psicologia e das ciências sociais que são muito mais relevantes e adequados, do que a medicina para determinar o conhecimento doutrinário. 

A questão identitária das pessoas trans encontra-se próxima de ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em ação direta de inconstitucionalidade ADI 4275, de autoria da Procuradoria Geral da República, tendo ingressado como amici curiae o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual (GADvS) e a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Trangêneros (ABGLT), além da repercussao geral reconhecida pela suprema corte no RE 670.422

Agora proponho a seguinte reflexão: se mesmo diante todos esses sólidos estudos em torno da compreensão da identidade de gênero, o juiz insiste em um laudo psicológico para atestar a condição da transexualidade ou atrela a retificação do registro civil à cirurgia de transgenitalização, ele demonstra, no mínimo, preguiça de avaliar a realidade identitária vivida por aquela que demanda a retificação de registro, o que pode ser facilmente constatado por prova documental e testemunhal. Além disso, demonstra um total menosprezo com o sofrimento vivido por uma pessoa que passa a ter sua identidade civil depondo contra a sua realidade social aumentando a situação de marginalidade e discriminação enfrentada por essas pessoas. 

Para Paulo Bonavides: “O Direito ou liberta ou não é Direito. Não lhe reconhecemos outra função, outra filosofia, outro escopo, outra validez. Não importa discutir-lhe a origem, mas o fim; o fim da concretude social contemporânea, sobretudo quando se atenta que aí já baixam sombras espessas sobre o futuro da liberdade e o destino dos povos. Aquele fim é a vocação das Constituições. Não podem elas, (…) apartar-se, por conseguinte, do constitucionalismo dirigente, vinculante, pragmatico. Fazê-lo seria condená-las à ineficácia, à obsolescência, à fatalidade, desatando-as de seus laços com o Estado social.” [5]

A leitura isolada do artigo 13 do Código Civil, distante da compreensão das questões reais enfrentadas pelas transexuais não pode servir de obstáculo para aprisiona-las em seu próprio corpo. A funcionalidade da sexualidade não se limita a um órgão sexual, não podendo a cirurgia de transgenitalização ser percebida como “diminuição permanente da integridade física”, sobretudo quando a própria medicina apresenta técnicas reconhecidas com sucesso para se manter a funcionalidade do órgão sexual redesignado de pênis para a “neovagina”, não se tratando mais de procedimento experimental (a transgenitalização de transexuais masculinos, por outro lado, referente a neofaloplastia ainda é considerada pelo CFM como cirurgia experimental) - cf. Parecer CFM 20/10

É preciso promover a constitucionalização do Direito que, sob a ótica da dignidade humana, deve garantir a liberdade dessas pessoas realizarem as mudanças necessárias em seu corpo para o alcance da felicidade na sua conformação identitária. 

As regras não podem ser interpretadas como obstáculo para a concretização dos princípios que visem a plenitude de vida do ser humano, sob pena de se fazer o uso do Direito como instrumento de dominação e de opressão.

[1] FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética? Revista Lua Nova, São Paulo 70: 101-138, 2007, p. 106.  
[2] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. Sur, Revista Internacional de Direitos Humanos. SP. v. 2. n. 2, 2005. 

[3] apesar de tratar de pessoas o sociólogo alemão enfrenta a luta pelo reconhecimento das minorias in HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 277. 
[4] APPIO, Eduardo. Direito das minorias. SP: RT, p. 197
[5] BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. SP: Malheiros, 2001. 


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