quinta-feira, 9 de maio de 2013

Universo Trans: a militante Márcia Rocha

por Frederico Oliveira

Numa tarde de maio do ano passado ouvi uma das palestras que mais me emocionou, não por esclarecimentos técnicos jurídicos, mas pelo depoimento da vida de uma pessoa que, com seu exemplo, mostrou o quanto a nossa sociedade precisa se transformar para o respeito à diferença e a diversidade sexual. Na sua coragem de assumir sua trangeneridade ela trouxe uma importante lição às pessoas que participavam de um dos painéis do I Encontro dos Direitos da Diversidade Sexual da OAB/SP realizado no Teatro Gazeta. 

Falo de Márcia Rocha, travesti, advogada, empresária, integrante da Comissão dos Direitos da Diversidade Sexual e combate a Homofobia da OAB/SP, membro da Associação Brasileira de Trangêneros (ABRAT), palestrante, militante e especialista na temática da trangeneridade. 

Estampando em seu registro profissional de advogada o nome de Marcos Cesar Fazzini da Rocha, Márcia não se incomoda em expor seu nome de registro utilizado por ela, inclusive, para exemplificar a importância de se quebrar paradigmas e promover mudanças na legislação para a alteração do nome de travestis e transexuais. 

Atualmente, Márcia é advogada e empresária bem sucedida, dona de uma exuberante feminilidade e de belos olhos verdes. Ela encanta com sua sensibilidade ao tratar do seu processo de transformação, reconhece e se apropria com muita dignidade da desafiadora missão de contribuir para a ampliação da cidadania das travestis e das transexuais tão marginalizadas no nosso país. 

Após uma sessão da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/SP fomos almoçar em clima de descontração no agradável Café do Páteo do Colégio, no centro de São Paulo onde ela carinhosamente me concedeu a entrevista. 

"A nossa obrigação de quem assumiu é tentar fazer com que o mundo se conscientize mais e compreenda melhor o que acontece com a gente e que torne o ambiente menos hostil pra que outras pessoas aí sim possam ser quem são."

Tudo começou na sua infância e desde os 4 a 5 anos de idade ela já se sentia trans. Lembra que com oito anos de idade ela se vestiu inteira de mulher às escondidas e que foi vítima de bullying na escola. Ela resistiu, reprimindo por muitos anos as manifestações de sua trangeneridade e passou a se portar publicamente de forma masculina, mantendo essa característica ao longo de sua adolescência até recentemente quando resolveu assumir publicamente sua transgeneridade. Márcia conta que se assumiu publicamente depois de alcançar uma estabilidade profissional e diz que essa tardia afirmação só se deu por conta da repressão familiar, social e da linha de terapia que cerceou a externalização pública de sua feminilidade. 

O processo de transformação
Eu joguei tudo pro espaço. Eu era o cara bem nascido, educado, que falava três línguas, de família boa, famosa, de empresários bem sucedidos. Eu joguei tudo pro espaço sem pestanejar. O grande problema na minha vida foi ter consciência, porque aos quatorze anos eu quis e me convenceram que não era legal. Eu fiquei nessa e meu pai me pôs num psiquiatra que me travava. Eu fiquei nessa travação até meu pai morrer em 2003. Quando meu pai morreu, o psiquiatra chegou pra mim na primeira sessão e falou "-bom, seu pai não paga mais a terapia e agora quem vai pagar é você" aí eu falei é "-então nós vamos mudar a linha da sua terapia" e eu falei como assim? ele olhou pra mim e falou: "-Você é uma mulher!" 

A angústia: o dilema de sair do armário
Tive oportunidade de estudar muito bem, de estudar nas melhores escolas, faculdade, de fazer cursos de língua, de morar fora, uma série de coisas. Morar fora eu fui com o meu dinheiro, trabalhava na Lopes [renomada imobiliária em que trabalhou como corretora e advogada] vendi meu carro, minha moto, peguei o dinheiro que eu tinha juntado fui e paguei meu curso lá fora sozinha. Meu pai era contra eu ir morar fora. Depois voltei. Daí um tempo montei estacionamento e não parei mais. (...) comecei a estudar sobre trangeneridade pra valer mesmo. Fiz isso durante dois anos. Ficava quatro, cinco, seis horas por dia estudando, lendo tudo o que caia na minha mão de livros sobre transgeneridade, sobre identidade de gênero, também na parte jurídica. Comecei a estudar porque eu queria entender na área de psicologia, antropologia, sociologia, direito e então eu acho que quando a gente quer uma coisa a gente tem que ir atrás, tem que arregaçar as mangas e ter esforço. Sem esforço não vai e isso como empresária, como advogada como o que for. (...) Eu faço parte de um clube secreto de cross-dresser que tem umas quinhentas pessoas lá dentro que não se expõem como eu e queriam ter seios, mas são empresárias, médicos, advogados, diretor de multinacional e morrem de medo das pessoas saberem e as vezes não sabem. Morrem de medo de perder emprego e a pessoa fala 'eu não aguento mais, eu vou jogar tudo pro alto, eu vou tomar hormônio' Eu falo: cuidado! você é vendedor de uma empresa do interior de Minas Gerais. Você vai assumir isso publicamente? Eles não vão te mandar pra um cliente mais! Você vai usar uma saia? Eles não vão te mandar pra um cliente! Precisa pensar! Precisa ter essa noção porque a vontade existe e eu sempre tive. Agora você jogar tudo pro alto pra ser quem você gostaria de ser e perder e ir pra debaixo da ponte e ter que se prostituir ou mesmo trabalhar de faxineira porque seu patrão não vai te aceitar!? Tem que pensar! Perder família, perder esposa. Eu perdi a minha esposa! Eu conheço trans que assumiram e que a mãe não fala mais com a pessoa. Amigos não falam mais. Então tem que ver o meio onde você vive, qual é o ambiente, qual é o preço que você vai ter que pagar. Então assumir.. a nossa luta na ABRAT tanto minha como do Laerte e da Maite [Laerte Coutinho o cartunista e Maite Shneider] é pra tentar fazer com que esse mundo se torne mais propício para que as pessoas possam se assumir. Eu não acho que todo mundo tem que assumir, cada um sabe onde o calo aperta. A nossa obrigação de quem assumiu é tentar fazer com que o mundo se conscientize mais e compreenda melhor o que acontece com a gente e que torne o ambiente menos hostil pra que outras pessoas aí sim possam ser quem são.

Trangêneros: violência e marginalização 
Se eu pensar na minha época era um outro mundo. Se eu saísse na rua vestida de mulher eu poderia apanhar da polícia e ser presa. Era comum, isso acontecia muito. Hoje é o contrário, hoje a polícia defende a gente. Existe uma mudança de épocas. As minhas amigas travestis mais velhas pegaram uma época em que a pessoa sofria bullying na escola, não ia mais pra escola. O pai não aceitava, pegava o filho vestindo uma calcinha, dava uma porrada e botava ele na rua, no interior da Paraíba. Daí ela pegava um ônibus vinha pra São Paulo ou Rio de Janeiro e ia se prostituir porque aí havia outras travestis e é aquilo que eu sou se juntava com elas e elas acolhiam e uma cafetina ensinava a se comportar, a se vestir, você tem que falar assim, você tem que tomar hormônio. Ensinava, ajudava ela a se transformar. Enfim, a menina ia trabalhar na rua e ia viver disso, nunca estudava e às vezes não tinha documento. Às vezes não tinha uma certidão de nascimento. Então a realidade está mudando. Hoje existem os movimentos sociais, existe legislação, existe toda uma outra realidade, mas não mudou tanto como a gente gostaria, porque dentro das escolas ainda as crianças sofrem bullying, ainda existe violência. Ainda as travestis apanham na rua. As famílias ainda colocam elas pra fora de casa. Ainda tem tudo isso, mas diminuiu, mudou a consciência. Hoje os meios de comunicação divulgam nas novelas. Hoje a gente anda na rua tem gente que fecha a cara, tem, mas tem muita gente que sorri, mais simpaticamente assim. Não existe muito mercado de trabalho. A gente não tem isso. A gente tá tentando agora pensar nisso. Criar alguma coisa, ir atrás de empresário para tentar conscientizar. Existem algumas empresas que dão empregos pra trans, mas poucas. Tentar ampliar isso e criar um desejo nas trans também. Porque você falar pra ela que você vai arrumar emprego pra ela trabalhar numa fábrica, ela vai dizer que ganha três vezes isso na rua e faço só o que eu quero e eu vou ter que aguentar chefe, aguentar homofóbico, aguentar horário e tudo pra ganhar um terço do que eu ganho. Ah mas e o futuro? O futuro, não tenho futuro,  com 30 anos eu estou morta. [diz ela como relatam muitas trans vítimas da marginalização] Média etária de vida. Estatística. Morre pela violência, morre por AIDS, morre por diversos motivos. Lógico que isso também está mudando.  (...) E elas falam. Outro dia uma disse: '-eu tenho 19 anos, com 25 eu vou estar morta e eu vou me preocupar com estudar e trabalhar? Eu vou aproveitar e vou ganhar o meu dinheiro e eu quero ir pra balada e encher a cara.' Infelizmente é a realidade e elas vão para o caminho das drogas, pro crack etc. Então mudar essa realidade passa também por uma tentativa de conscientização, de abrir oportunidades, de mais cultura para trans que estão na rua. Existe o "Projeto Purpurina", trabalhos sendo feitos para pegar crianças e adolescentes e tentar conscientizar a família, pra que não ponha na rua, pra que aceite. Pra que ajude e pegar esses meninos e tentar conscientizar pra que eles estudem, pra que eles não vão para as drogas e tentar fazer com que eles tenham oportunidade. Por exemplo a minha cabeleireira [trans] se formou agora em design gráfico e não tem emprego. Não é só fazer a pessoa querer, fazer a pessoa estudar. Tem que abrir oportunidades pra essas pessoas. Acredito que no momento de agora dá pra começar a mexer com isso.

Casos de violência ou agressão sofrida depois da transformação
Teve uma quase agressão ano passado. Estava eu e a Maite e eu até falei na palestra da OAB. Estava com ela em Arraial D'Ajuda. Nós fomos numa balada. Estava amanhecendo e vieram três marmanjos enormes com extintor de incêndio por trás de mim pra me jogar só que a Maite viu, olhou e me chamou e eu virei. Eles pegaram colocaram o extintor no chão, disfarçaram e largaram o extintor bem atrás de mim. Mas eles iam jogar, mas a Maite percebeu e então não aconteceu. E esse ano agora faz dois meses eu fui no estacionamento, entrei, parei o carro estava fumando e estava falando no telefone. Eu entrei parei o carro e terminei de falar desci do carro e apaguei o cigarro no chão. Daí o manobrista veio e disse: 'olha o gerente tá aí e falou que você precisa tirar o carro, porque você entrou fumando e falando no telefone e ele ficou te chamando, mas você não ouviu e ele está dizendo pra você tirar o carro.' Então fui até lá na guarita onde estava o gerente, peguei o celular e comecei a gravar e falei qual é o problema e ele disse.'porque aqui você não vai parar porque senão eu vou chamar a polícia." Aí eu falei olha eu estou filmando e quando eu falei que estava filmando ele tentou arrancar o celular da minha mão e eu dei um passo pra trás e falei olha eu sou advogada estou filmando e é o seguinte eu vou ficar com o carro aqui porque não tem motivo nenhum pra você mandar eu sair daqui. (...) Outro caso eu estava no elevador uma vez voltando de uma reunião em um prédio super chique e eu estava descendo o elevador e estava bem na frente da porta. Na hora que o elevador parou no andar que eu ia descer daí um cara botou a mão na minha frente, entrou na minha frente tipo você não vai sair primeiro porque você não é mulher. Esperou todo mundo sair do elevador. Olhou pra mim com desprezo e saiu. E eu peguei saí atrás dele por último e saí e fui embora. O cara é um idiota, deixa ele, eu saio por último. Isso não me faz mais ou menos mulher. Eu sou quem eu sou. Não tenho que provar nada pra ninguém. Muito menos pra um imbecil. Fora esses casinhos isolados eu não tive nenhum caso de agressão, de violência física. 


"Ninguém é igual a ninguém. Todas as pessoas são completamente diferentes e todos tem que ter direitos e tratamentos iguais. 


Aquela história da igualdade não é que todo mundo é igual, porque todo mundo é bem diferente mas tem que ser tratado de maneira igual. O direito tem que ser igual. O casamento tem que ser pra todo mundo. 









A questão do nome e as convenções sociais 
Dentro da militância transexual, como a transexual sente que é uma mulher que está no corpo errado a questão do nome é importantíssimo. Porque é importante pra elas passar batido sem ninguém perceber. Pra essas pessoas a questão do nome, do registro civil é muito importante. Pra uma travesti é importante também por uma questão da dignidade da pessoa humana pra pessoa não passar constrangimento, está com o cabelo feminino, com jeito feminino e está numa situação de que chamam de João e isso acontece comigo direto. A ABRAT tem uma postura um pouco diferente. Eu não quero ser mulherzinha. A gente está ligado com outros movimentos sociais, como feministas, questões sociais, econômicos. Estamos para 'quebrar com tudo isso que está aí'. Então porque que eu vou lutar pra ser uma mulherzinha enquadrada. Eu não quero ser uma mulherzinha enquadrada pra ter meu marido e lavar a cueca dele. A gente quer que a pessoa tenha o direito de ser quem ela quiser e ponto. Então assim, eu não vou mudar o meu nome, primeiro eu não quero fazer cirurgia porque eu não sou transexual. Não vou mudar o meu nome. Faço questão de ir numa repartição pública e me chamarem de Marcos porque aí eu levanto fico constrangido: fico! Mas fica constrangido quem me chamou e fica constrangido todo mundo que está na sala. É uma maneira de mostrar pra todo mundo que isso está errado. Agora eu preciso ser chamada de Márcia, gosto de ser chamada de Márcia não é pra que ninguém fique constrangido. O constrangimento está errado, não deveria existir. Nome é rótulo. Tudo é rótulo. O tipo de roupa que você usa é rótulo. Tem que usar um tailler não sei aonde, é rótulo. É regra social. Devia poder ser o que quisesse. Eu sou a favor de uma liberdade absoluta de ser humano ser quem é e como quiser sem ter que ficar se enquadrado em quadradinhos. A gente tem regras sociais, a gente tem que respeitar determinadas coisas. Eu acho que o que a gente tem que caminhar é pra um liberdade. Uso a roupa que pra mim veste melhor. 

Igualdade e o direito de ser diferente
Ninguém é igual a ninguém. Todas as pessoas são completamente diferentes e todos tem que ter direitos e tratamentos iguais. Aquela história da igualdade não é que todo mundo é igual, porque todo mundo é bem diferente mas tem que ser tratado de maneira igual. O direito tem que ser igual. O casamento tem que ser pra todo mundo. Defendo a liberdade absoluta para o ser humano ser feliz. A gente tem que parar é de ser hipócrita. O que a sociedade tem que parar é de fingir que se enquadra e exigir dos outros. Fica todo mundo fingindo que é enquadradinho (porque não é) e fica querendo exigir dos outros, porque se eu tenho que ficar fingindo o outro não vai fazer o que quer. Vamos parar de fingir todo mundo e vamos ser feliz. Garanto pra você que o número de violência vai baixar porque eu acho que grande parte da violência humana vem por causa dessas repressões, de desejos reprimidos, das necessidades reprimidas inatingíveis muitas vezes dentro de uma certa sociedade. As pessoas tem que ser mais felizes, mais verdadeiras, mais autênticas, mais humanas e compreender mais o outro com suas peculiaridades. 

"Acho o feminino  sublime. Não apenas a feminilidade que levo dentro de minha alma, mas toda aquela que vejo, cheiro, toco ou desejo. Personalidade é algo que não construímos intencionalmente, que se forma por si sem qualquer controle de quem quer que seja." Márcia Rocha

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