sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Estudante de Direito transexual questiona jurista pelo uso do termo "transexualismo"

por Frederico Oliveira.

Arquivo pessoal
Bianca Figueira, conhecida por ter sido excluída dos quadros da ativa da Marinha do Brasil, em razão de sua condição de gênero, após se submeter ao processo de trangenitalização, rebateu recentemente o jurista Flávio Tartuce, por utilizar em seu livro o termo "transexualismo" para referir-se à condição das transexuais. 

Atualmente Bianca é estudante de Direito da Universidade Estácio de Sá, em Niterói-RJ e trabalha como conciliadora do Juizado Especial Cível na referida cidade. Ao estudar temas de Direito de Família ela se deparou com o livro de Direito Civil, Volume V, de autoria de Tartuce que dá uma noção equivocada e ultrapassada a respeito da condição das pessoas transexuais.

Ao utilizar o termo "TRANSEXUALISMO", o jurista demonstra ter uma visão altamente preconceituosa e desconectada da realidade.


Os estudos sobre gênero, monstram claramente que os papéis masculino e feminino são fruto de padrões sociais construídos tradicionalmente e historicamente. Não é o órgão sexual que determina as expressões, os trejeitos e a vestimenta adequada para o indivíduo. A essência da feminilidade ou da masculinidade tem muito mais de construção social do que propriamente de fator biológico ou genético, sendo INACEITÁVEL, por essa razão, que a medicina, e, muito menos o direito, possam afirmar que a condição das pessoas transexuais seja colocada como patologia.

As transexuais dependem de uma adequação anatômica de seu aparelho sexual e de sua aparência física, dependendo, pois, de procedimentos a serem realizados pela medicina que vem avançando na compreensão do tema.

Apesar de ainda resistirem à completa despatologização, o Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental utilizado pela Psiquiatria, deixou de considerar a transexualidade como “transtorno de identidade”, com forte carga patológica, substituindo-a por “disforia de gênero”.

Mesmo assim, no Brasil, a transexual depende necessariamente de um laudo psiquiátrico para se submeter ao processo transexualizador, diferente do que ocorre em países mais desenvolvidos e especialmente da nossa vizinha Argentina que respeita os direitos da identidade de gênero, sem vinculação à absurda avaliação psiquiátrica. Em nosso país tramita no Congresso Nacional um projeto de lei de autoria dos deputados federais Jean Wyllys (PSOL/RJ) e Érika Kokay (PT/DF) nesse sentido. 

Veja por exemplo que a medicina hoje atua não somente para o combate de uma patologia, a exemplo dos inúmeros procedimentos médicos realizados para fins estéticos e de bem estar como as cirurgias plásticas, tratamentos dermatológicos etc. Submeter-se a esses procedimentos tal como a colocação de próteses de silicone para as mulheres ou prótese peniana para homens independe, por óbvio, de qualquer laudo psiquiátrico, bastando apenas a autonomia da vontade do paciente para que tais procedimentos se realizem. 

Apesar disso, segundo Bianca, Flávio Tartuce, respondeu dizendo que utilizou o termo com base, segundo ele, na “maioria dos estudos”, fazendo remissao à obra do ultrapassado psicanalista Henry Frignet, denominada “O Transexualismo”. Na resposta, o jurista, por ocasião de uma nova edição, se compromete apenas a fazer uma nota sobre os apontamentos feitos por Bianca, mantendo sua posiçao a respeito da condiçao patológica das transexuais.

Ao jurista Flávio Tarturce que, provavelmente não vem se atualizando a respeito dos estudos de gênero, que fazem parte das questões de direito de família e da personalidade civil, deixamos o seguinte recado: a medicina, assim como o direito que depende de uma ordem normativa, sempre foram as ciências mais atrasadas na compreensão da condição humana, bastando ver o tratamento que foi dado à condição da homossexualidade, que só foi retirada pela Organizaçao Mundial de Saúde (OMS) do catálogo de doenças (CID) em  1990, época em que os estudos da sociologia e da psicologia, já consideravam inaceitável esse tipo de tratamento altamente preconceituoso e ofensivo à condição dessas pessoas.

Veja o teor da carta:

Caro Dr. Flávio Tartuce,

Fiquei deveras chateada, para não dizer muito aborrecida, com sua abordagem sobre a TRANSEXUALIDADE (e não TRANSEXUALISMO, pois o sufixo ISMO indica DOENÇA) no seu livro DIREITO CIVIL V - Direito de Família.
Eu sou mulher transexual, com cirurgia de transgenitalização (ou de redesignação sexual ou de readequação sexual, e não MUDANÇA DE SEXO) já realizada, com prenome e gênero já alterados judicialmente. Sou estudante de Direito pela Estácio Niterói, sou Conciliadora no JEC da Região Oceânica de Niterói há quase dois anos e sou Membro da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB/RJ. Além disso, sou Capitã-de-Corveta (reformada) da Marinha do Brasil, reformada por conta de ser transexual. O Sr. já deve ter me visto em alguns programas televisivos, especialmente no programa NA MORAL sobre TRANSGÊNEROS e em minha última entrevista para a TRIBUNA DO ADVOGADO, edição de MARÇO2014, sobre o  título O DIREITO DE SER QUEM É, que ganhou o prêmio NACIONAL DE COMUNICAÇÃO E JUSTIÇA 2014.

Gostaria de comentar os pontos que observei e que me atordoaram profundamente em sua abordagem sobre o TRANSEXUALISMO (SIC) no seu livro:

1. A TRANSEXUAL feminina não QUER SER mulher. A mulher transexual já nasce mulher, só que com o corpo destoante de sua identidade de gênero e necessita de forma premente das mudanças corporais e cirurgias para adequar seu corpo à sua mente, pois o contrário não dá para ser feito;

2. A TRANSEXUALIDADE não é uma PATOLOGIA, não é uma ENFERMIDADE, isto é pacífico até mesmo pelo próprio CFM que já se manifestou várias vezes sobre essa posição. Consulte o CFM, faça uma indagação a eles a esse respeito. A transexualidade infelizmente ainda figura no CID-10 (Código internacional de Doenças, elaborado pela OMS) como TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO e no DSM-5 (Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental) revisado este ano passando a adotar o termo DISFORIA DE GÊNERO e não mais transtorno de identidade de gênero, demonstrando uma forte tendência de retirá-la dos referidos manuais dentro em breve, assim como aconteceu com o HOMOSSEXUALISMO (SIC) que deixou de ser doença em 1985 pelo CFM e em 1990 pela OMS, passando a ser chamado de HOMOSSEXUALIDE, uma condição humana. Isso tudo por graça a um movimento mundial STOP TRANS PATHOLOGIZATION 2012 que luta pela retirada da transexualidade como psicopatologia dos manuais. O fato de constar ainda no CID legitima o PRECONCEITO e a DISCRIMINAÇÃO das pessoas transexuais e respalda órgãos públicos e entidades provadas a afastarem, a dispensarem, a expurgarem os transexuais de seus quadros, como aconteceu no meu caso com a Marinha do Brasil, que após 21 anos de bons serviços prestados, fui afastada compulsoriamente e arbitrariamente de minhas funções, por ser transexual e manifestar minha decisão em mudar minha anatomia para torná-la condizente com minha condição psíquica.

Dr. Flávio, tratar a Transexualidade como doença é negar direitos, é subjugar pessoas, é segregar, é discriminar. Tratar minha sexualidade como doença me fez ir ao fundo do poço, me fez perder minha profissão, me fez perder tudo o que eu tinha construído ao longo de 35 anos de vida, que agora estou tentando reestruturar na tentativa de buscar minha felicidade como MULHER que sou, que sempre fui... desde que nasci.

Em breve teremos a retirada da Transexualidade como doença dos manuais, mas sei que, mesmo assim, ainda vamos ser maculadas pelo preconceito e discriminação de uma sociedade doente, que ainda atira bananas aos nossos jogadores de futebol nos estádios. Ou vai existir algum parlamentar fundamentalista que vai propor a "cura transexual" em alguma Comissão Temática do Congresso Nacional ou mesmo como Projeto de Lei.

Ao ler o seu livro, na página 79, eu tive a certeza de que o Sr. não esperava que uma pessoa transexual pudesse ter acesso a ele, sentada em uma Universidade, desejando se formar, ser Advogada e quem sabe galgando outros postos e cargos na carreira jurídica. Somos minoria e sempre seremos pois o fenômeno da transexualidade vai sempre recair sobre uma minoria, minoria esta que não pode ser considerada patológica somente por ser minoria, diferente e destoante dos demais membros da maioria. Minoria esta que possui direitos e que está hoje, assim como eu, exigindo seu espaço, mesmo sabendo que grandes batalhas teremos pela frente. Uma delas estou tentando travar agora, nesta comunicação que lhe faço e que espero que o Sr. avalize e quiçá, altere a próxima edição de seu livro de DIREITO DE FAMÍLIA V, para que pessoas como eu não se sintam mais "patológicas" ao lerem seu livro.

Não sei nem mesmo se o Sr. vai responder a este contato, mas gostaria de deixar registrada minha PROFUNDA DECEPÇÃO a uma pessoa tão ilustre no meio jurídico, tão inteligente e sábia e que eu sempre nutria inegável admiração.

Atenciosamente e respeitosamente,


Bianca Figueira.


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