quinta-feira, 31 de julho de 2014

PGR se manifesta favorável à criminalização da homo-trans-fobia: a concretização constitucional da cláusula proibitiva da discriminação

por Frederico Oliveira

O Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria-Geral da República (PGR), manifestou-se favorável à criminalização da homofobia e da transfobia para que seja aplicada as  penas previstas na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei de Racismo) que pune a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional ou subsidiariamente a aplicação do PLC 122/2006, que visa punir especificamente a homofobia e a transfobia e que, atualmente, encontra-se reunido ao projeto do novo Código Penal em tramitação no Congresso Nacional. 



A atribuição do Ministério Público Federal e do seu Procurador-Geral da República 

O MPF tem como chefe maior o Procurador-Geral da República, cujo cargo atualmente é ocupado por Rodrigo Janot, a autoridade que deu o parecer em favor da criminalização.

Apesar desse cargo ser indicado pelo Presidente da República por ato complexo de nomeação, após a sabatina da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, a atuação do Procurador Geral da República deve atender ao princípio da unidade do Ministério Público, como  órgão dotado de independência funcional, desvinculado de qualquer dos poderes  (executivo, legislativo e judiciário) na missão de promover a "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." (art. 127, CRFB/88)

Desse modo, o órgão ministerial é essencial à função jurisdicional do Estado. Por isso, instado a manifestar nas ações constitucionais, como é o caso do mandado de injunção, deve zelar pela constitucionalidade das normas e atos normativos no denominado controle de constitucionalidade, inclusive nos casos de omissão legislativa. 



A ação constitucional como instrumento para garantir o exercício pleno da cidadania LGBT 

O parecer que sinaliza bons ventos em favor da proteção da cidadania e defesa das liberdades individuais das pessoas LGBT foi emitido em Mandado de Injunção (MI 4733) impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Transgêneros (ABGLT), patrocinado pelo advogado Paulo Roberto Iotti Vechiatti que com brilhantismo defendeu as seguintes teses:

"i) o reconhecimento de que 'a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito ontológico-constitucional de racismo' ou, subsidiariamente, que sejam entendidas como 'discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais';

ii) a declaração, com fundamento nos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal, de mora inconstitucional do Congresso Nacional no alegado dever de editar legislação criminal que puna, de forma específica, a homofobia e a transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) a violência física, os discursos de ódio, os homicídios, a douta de praticar, induzir e/ou incitar o preconceito e/ou discriminação por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero, real ou suposta, da pessoa.' "

A ação, teve, pois, como pedido objetivo "obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima, por ser isto (a criminalização específica) um pressuposto inerente à cidadania da população LGBT na atualidade".

O mandado de injunção é um remédio constitucional apto a garantir a proteção a direitos que não podem ser exercidos em razão da ausência de norma regulamentadora especificada na Constituição (art. 5º, LXXI, CRFB/88). 



A omissão do legislador de cumprir a ordem da Constituição que manda punir qualquer discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI)

A norma regulamentadora apta a proteger a cidadania LGBT que é vítima constante da violência do preconceito e da discriminação, diz respeito à ordem determinada pela Constituição que dirige ao Congresso Nacional o dever de editar lei para punir qualquer tipo de discriminação que atente contra direitos e liberdades fundamentais, tal como estabelece expressamente o art. 5º, XLI da CRFB/88, nestes termos: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". 

Tal como já me posicionei em diversos artigos desse blog, a homofobia e a transfobia como realidade evidenciada inclusive por estatísticas de agressões e homicídios motivados pela rejeição a pessoas LGBT é flagrante atentado contra os direitos e liberdades fundamentais e, principalmente, ao fundamento da dignidade da pessoa humana. Essa foi a principal razão que fez com que Janot manifestasse pelo acolhimento da ordem mandamental para a concretização de uma norma protetiva ao exercício pleno da cidadania LGBT, população que vive o obstáculo opressor da homofobia e da transfobia. 



A mora legislativa em cumprir a cláusula proibitiva de discriminação 

No parecer, Janot reconhece a mora legislativa pelos treze anos de tramitação do Projeto de Lei 5.003/2001, aprovado originariamente na Câmara dos Deputados e que ao ser encaminhado ao Senado Federal tomou a denominação de PLC 122/2006. Ele defende que "a parca legislação penal em vigor não mais dá conta da discriminação e do preconceito referentes à orientação sexual e à identidade de gênero", frustando a força normativa da Constituiçao que manda expressamente que todas as formas de discriminação sejam punidas (art. 5, LXI).  

Nesse ponto, cumpre acrescentar - o que já denunciei em outra oportunidade - que o Senado Federal, mediante obscuros acordos com as bases conservadoras e religiosas fundamentalistas contrárias à concessão de direitos à população LGBT, optou, mesmo após a aprovação do referido projeto pela Câmara dos Deputados em apensar o PLC 122/2006 ao projeto do novo Código Penal que, em razão de sua extensão, levará anos até ser totalmente discutido, votado e aprovado pelas duas casas legislativas. 


O importante papel do Ministério Público para a estabilidade do Estado Democrático de Direito e na defesa dos direitos fundamentais indisponíveis da população LGBT

O Ministério Público como importante órgão para contribuir com a estabilidade do Estado Democrático de Direito é elemento essencial para a lógica do sistemas de freios e contrapesos que deve estar entranhado nos poderes do Estado que por meios de mecanismos processuais específicos se efetivam pelo controle de constitucionalidade das funções dos poderes do Estado, especialmente quando se trata de reconhecida omissão legislativa que, de acordo com o parecer da PGR, deve ser concretizada em caráter excepcional e supletivo por aplicação da já existente norma que criminaliza o ódio tal como é o caso da Lei de Racismo, abrigando-se também a homofobia e a transfobia como típicos atentados aos direitos e as liberdades fundamentais das pessoas LGBT. 

Não bastasse isso, o Procurador-Geral ressaltou o engajamento das funções essenciais da justiça "no combate ao preconceito e à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero", ressaltando que essas funções "ficaram conhecidas na sociedade brasileira como defensoras dos direitos fundamentais a eles associados e não devem agora esmorecer nem se mostrar pusilânimes diante da impostergável criminalização de condutas homofônicas e transfóbicas."



A posição do STF sobre a Lei do Racismo inibitória dos crimes de ódio 

É importante considerar que o Supremo Tribunal Federal (STF) no caso Elwanger ao negar-lhe  habeas corpus por crime de racismo contra judeus, reconheceu que a configuração do crime de RACISMO não se limita exclusivamente a critérios de raça ou etnia, mas de fatores referidos à ofensas provocadas pelo ódio que alimentam o preconceito e a discriminação. O objetivo da lei que pune os crimes de racismo, segundo a interpretação da Corte Suprema até então é combater a intolerância baseada em critérios determinantes da diferença peculiar a certos grupos sociais como é o caso de discriminação contra o povo judeu no antissemitismo. Nessa oportunidade, assentou-se o entendimento que os crimes de ódio também abrangeria àqueles segregadores de minorias tais como aventou-se o ódio dirigido às pessoas LGBT.  

Em outras palavras, o STF tem entendimento firmado de que a Lei de Racismo tem motivação dirigida aos crimes de ódio, tal como acontece com as pessoas LGBT que na realidade são vítimas de ofensas individuais e coletivas, de homicídios, agressões e discriminações motivadas em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero real ou suposta. 

A legitimidade do ativismo judicial para a defesa da cidadania das minorias oprimidas pela violência praticada pela maioria 



Para aqueles que porventura insistem em ter uma visão refratária sobre o princípio da reserva legal e da separação dos poderes, é importante ressaltar que o processo legislativo é um processo complexo que não se resume exclusivamente à atuação legislativa, sobretudo quando o Poder Legislativo de maneira manifestamente protelatória deixa de cumprir a ordem constitucional de atender a proteção punitiva contra todas as formas de discriminação. Tanto é verdade que as leis infraconstitucionais sofrem a interveniência do Poder Executivo (na sanção ou veto) e posteriormente à sua edição estarão submetidas ao controle concentrado de constitucionalidade, que no caso de lei federal é feita pelo STF. 

Nesse aspecto, para a defesa de direitos das minorias sem voz no cenário político e diante da perversa omissão legislativa influenciada pelo cenário de uma sociedade opressora da orientação homossexual e da transgeneridade, cabe ao STF como guardião da Constituição, adstrito à efetivação de direitos fundamentais, a concretização de uma norma que dê eficácia à realidade jurídica constitucional menosprezada pelos representantes do povo que insistem em ser coniventes com o preconceito e a discriminação às tais minorias socialmente marginalizadas e vitimadas pela violência. 

É absurdo o argumento da alegada falta de representatividade popular da Suprema Corte (os ministros não são eleitos pelo povo) para promover a concretização normativa (ativismo judicial) para a tutela da cidadania das minorias. Tal exigência para a proteção de direitos fundamentais desses grupos que, pela conjuntura da endêmica doença social da intolerância, inviabilizaria o cumprimento pleno do objetivo republicano de atender o bem de todos sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação (art. 3º, IV CRFB/88) e em pior grau,  implicaria em grave desrespeito aos magnânimos fundamentos da CIDADANIA e da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA que devem ser irradiados a todos os indivíduos e a todo o ordenamento jurídico.

A concretização da ordem constitucional é urgente e precisa ser efetivada de forma também a atender o princípio da eficiência a que se obriga todo agente político, o que ainda estamos longe de vê-la efetivada por completo, a exemplo de diversos casos de mora legislativa tal como a inércia para garantir o direito de greve dos servidores públicos a que o STF deu efeito concretizador aplicando-se a lei geral de greve etc. 

Excluir da proteção a discriminação a pessoas em razão da orientação sexual e identidade de gênero, tal como salientou o Procurador-Geral da República seria uma inaceitável hierarquização de opressões, pois, a opressão em razão de orientação sexual e identidade de gênero não são inferiores ou menos graves que a opressão decorrente de raça, etnia, religião ou procedência nacional já especificamente tutelada e protegida. 

O STF e os mecanismos de diálogo com a sociedade civil organizada: o respeito ao contraditório e a estabilidade democrática nas proposições políticas

Por outro lado, como forma de estabelecer o diálogo com a sociedade, no direito ao contraditório para  a concretização da tutela de proteção à cidadania LGBT, a ordem jurídica brasileira possibilita a participação da sociedade civil organizada com abrangência nacional para integrar as ações de controle de constitucionalidade. Desse modo, a corte por força legal, se mostra aberta à sociedade de intérpretes da Constituição tal como elucida a obra do alemão Peter Haberle, com direito a manifestação, tanto em audiências públicas que podem ser designadas pelo relator do caso, bem como por meio dos "amici curiae", o que também pode-se chamar de "amigos da corte" por contribuírem com a participação no debate e estabelecendo-se, assim, o contraditório. 


Questões procedimentais 

A título informativo das questões procedimentais de maior relevo e compreensão para os operadores do direito é que o MI em questão foi extinto prematuramente pelo relator Min. Ricardo Lewandowski, acolhendo parecer anterior da PGR no sentido de que "não há em jogo direito subjetivo especificamente consagrado na Carta Magna cuja fruição esteja sendo obstada pela ausência de regulamentação legal." A referida decisão foi tomada à época em que o projeto de criminalização apesar da demora estava sendo discutido pelo Congresso Nacional, o que de fato era realidade e que levou o relator a extinguir a ação.

Dessa decisão foi interposto agravo regimental pela ABGLT. Nesse ínterim sobreveio o apensamento do PLC 122/2006 ao projeto do novo Código Penal, razão mais do que suficiente para confirmar com maior evidência a tese da omissão e a mora legislativa, modificando a realidade da demanda. Diante dessa nova realidade, e evidenciando o pedido de declaração da mora legislativa como suficiente para provimento do recurso, a PGR modificou seu posicionamento anterior e postou-se no sentido favorável ao pedido da ABGLT.

É importante ressaltar que tramita no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão (ADO 26), proposta pelo Partido Popular Socialista (PPS), de relatoria do Min. Celso de Melo. Essa ação com objeto que converge para o mesmo pedido do MI, também patrocinada pelo advogado Paulo Iotti, foi mencionada pela PGR no sentido de que a questão da discriminação e preconceito contra LGBT precisa ser solucionada, independente das diferenças e semelhanças das espécies processuais.

Conclusões

Faço minhas as palavras do Procurador-Geral da República que, a meu ver, releva com lucidez o que de fato deve ser considerado para a compreensão de toda a comunidade jurídica e a sociedade de modo geral sobre o tema:

"É preciso que a sociedade e a comunidade jurídica brasileira obtenham resposta jurídica satisfatória e urgente, em termos penais, ante a determinação constitucional expressa de criminalização da homofobia e da transfobia."


Foto: Divulgação

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