
Passamos então a falar dos indivíduos que necessitam transgredir a sexualidade, externalizando a incompatibilidade de sua personalidade quanto ao gênero biológico que lhe foi dado com o nascimento. Infelizmente, a transgeneridade tem sido vista como um distúrbio psicológico e para os mais desinformados um destino comum de todos os homossexuais, o que não é verdade.
É preciso deixar claro que, além da orientação sexual que tem como variantes a heterossexualidade, a bissexualidade e a homossexualidade que corresponde a atração sexual por pessoas do mesmo sexo biológico, temos a identidade de gênero como um importante dado para a realidade da diversidade da sexualidade humana comprovada por diversos estudos científicos. Orientação sexual e identidade de gênero são coisas diferentes.
A identidade de gênero deve ser entendida como uma experiência interna na formação do gênero da pessoa que pode ou não corresponder com o órgão sexual definido no nascimento. Nesse aspecto, o indivíduo poderá direcionar suas expressões de gênero, como o ato de se vestir, o modo de falar e sua postura em desconformidade com os padrões definidos socialmente aos gêneros masculino e feminino. Isso ocorre, porque no curso da evolução social fomos definindo convencionalmente os papéis dos homens (masculino) e os papéis das mulheres (feminino). É preciso ressaltar que a definição desses papéis foi regida historicamente pela dominação do masculino com a submissão do feminino, pois, não é por acaso que as meninas tinham que brincar de boneca e casinha em reforço a essa dominação que associavam às mulheres as atividades domésticas. Em outras palavras, fomos separando aquilo que era de menino e aquilo que era de menina tal como a cor azul para os meninos e o cor-de-rosa para as meninas, vestimentas de menino e vestimentas de menina.
O problema não é o da construção dos papéis ou dos comportamentos dirigidos aos homens e as mulheres (o sexo biológico) muitos deles decorrentes da manifestação hormonal como é o caso da voz mais grave e do pomo-de-adão, comum aos homens pela preponderância da testosterona. O problema está quando a sociedade não aceita ou não consegue compreender que esse padrão, apesar de existir socialmente, não corresponde sempre à realidade da sexualidade humana. O padrão dos papéis feminino e masculino - que de fato existem e não podem ser desconsiderados - não se amoldam à lógica da construção do sexo dos indivíduos que não está vinculada exclusivamente aos seus órgãos genitais ou ao seus aparelhos reprodutores. É aí que deparamos com o universo trans, ou seja, o modo de vida daqueles que transitam de um gênero para o outro a que denominamos de transgêneros.
Travestis ou transexuais vivenciam um dilema diante do espelho e não se afeiçoam com os atributos dirigidos ao seu sexo biológico. É como se o indivíduo tivesse uma cabeça de mulher em um corpo de homem ou uma cabeça de homem em um corpo de mulher. No universo trans a incompatibilidade com os atributos de gênero masculino e feminino faz com que essas pessoas sintam a necessidade de transpor esses padrões de formas variáveis.
Nesse universo não cabem os padrões, principalmente quando falamos de travestis que transitam entre um gênero e outro e que até se conformam com o aparelho sexual biológico, mas não com os atributos impostos a ele. Para esses, a orientação homossexual não é regra, pois é possível que um travesti tenha atração sexual por pessoas de sexo oposto. Vejamos, pois, as diferenças existentes entre travesti e transexual, conforme revela o Texto base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis e Transexuais:
Travesti: pessoa que nasce do sexo masculino ou feminino, mas que tem sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico, assumindo papeis de gênero diferentes daquele imposto pela sociedade. Muitas travestis modificam seus corpos através de hormônioterapias, aplicações de silicone e ou cirurgias plásticas, porem vale ressaltar que isto não é regra para todas.”; e
Transexual: "pessoa com identidade de gênero que se caracteriza por uma afirmativa de identificação, solidamente constituída e confortável nos parâmetros de gênero estabelecidos (masculino ou feminino), independente e soberano aos atributos biológicos sexualmente diferenciados. Esta afirmativa consolidada pode, eventualmente, se transformar em desconforto ou estranheza diante destes atributos, a partir de condições sócio-culturais adversas ao pleno exercício da vivência dessa identidade de gênero constituída. (...) A transexualidade também pode, eventualmente, contribuir para o indivíduo que a vivencia objetivar alterar cirurgicamente seus atributos físicos (inclusive genitais) de nascença para que os mesmos possam ter correspondência estética e funcional à vivência psicoemocional da sua identidade de gênero constituída."
Diversas pesquisas científicas remontam o sofrimento que dos trangêneros pela imposição dos modelos pré-definidos pela sociedade. Como não se adequam a esses padrões sociais, são marginalizados e estigmatizados.
Infelizmente sobra a eles espaços muito restritos, especialmente no que tange a oportunidades de trabalho praticamente inexistentes. Muitos ganham espaço apenas nas ruas no caminho da prostituição. As oportunidades de trabalho formal para esse grupo geralmente se restringem a algumas profissões onde há uma maior aceitação como as profissões de cabeleireiro ou de maquiador.
Infelizmente, ainda há uma visão muito fechada a respeito do reconhecimento desse universo. Travestis e transexuais são invisíveis na sociedade que nega acesso dessas pessoas em diversos espaços sociais, sobretudo diante da resistência em compreender que a trangeneridade não se trata de opção, mas de um modo de ser peculiar da natureza humana e que precisa ser respeitado. As pessoas não escolhem ser travestis ou transexuais, elas simplesmente externalizam o seu jeito de ser, dentre as suas necessidades e preferências que não correspondem aos padrões convencionados.
Disforia de gênero, neurodiscordância de gênero são denominações utilizadas para fazer referência a transexuais que não se compatibilizam com o gênero do nascimento, especialmente quanto aos seus órgãos genitais. Nesses casos, de acordo com o grau da discordância, o processo transexualizador ou cirurgia de redesignação sexual é a solução para garantir a compatibilização da identidade de gênero, diminuindo, assim, o sofrimento vivido por essas pessoas que se sentem infelizes presas a um corpo que não corresponde às características que lhe são próprias.
No Brasil, o processo transexualizador ou cirurgia de redesignação sexual vem sendo realizada pelo SUS (Sistema Único de Saúde) desde 2008, graças a uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal, acolhida em grau de recurso pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Muitas políticas ainda precisam ser reguladas e implementadas no sentido de garantir o reconhecimento, a integridade física, psicológica e ético-espiritual que são direitos das travestis e transexuais. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade desse universo e deve atender as necessidades dessa parcela da população estigmatizada e marginalizada socialmente. Precisamos avançar muito para efetivação da dignidade dos transgêneros, especialmente em políticas como o direito de alteração do registro civil para a mudança de nome, bem como as políticas públicas de saúde como é o caso da hormonoterapia etc.
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