terça-feira, 19 de março de 2013

A crise do regime democrático: Direitos Humanos por um fio

Estamos vivendo uma grave crise no regime democrático brasileiro em razão de um iminente retrocesso que poderá jogar para o ralo uma série de conquistas, especialmente no campo dos Direitos Humanos e dos Direitos da diversidade sexual. 
Havendo ou não protesto, parecendo ou não parecendo piada de mau gosto, Marco Feliciano continua sendo o Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados por onde passa uma série de projetos que tocam questões sensíveis à proteção da dignidade humana. As manifestações populares parecem não surtirem efeito algum quando parecíamos viver uma maturidade do regime democrático brasileiro. As casas legislativas que deveriam representar os interesses populares fecham grosseiramente as portas aos reclamos da população, denotando nisso, um autoritarismo próprio de regimes totalitários. A prova maior foi a nomeação de Renan Calheiros como presidente do Senado Federal, ao arrepio dos interesses dos mais diversos segmentos sociais, além da nomeação de Marco Feliciano que,  em razão  do seu posicionamento homofóbico e preconceituoso, coloca em risco o futuro dos direitos humanos no Brasil, sobretudo no que tange aos direitos da diversidade sexual. Não poderia esquecer também, a pretensa blindagem oferecida aos deputados mensaleiros para não perderem o mandato, tal como ficou decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do maior esquema de corrupção experimentado no país, engendrado nas bases do governo Lula. 
A movimentação do poder no cenário político brasileiro vai na contra mão das manifestações populares que aumentam como prova mais do que concreta de que estamos vivendo uma série crise do regime democrático. Os detentores do poder político demonstram claramente a intenção de que são capazes de fazer qualquer jogo sujo para garantir seus interesses eleitoreiros em total desrespeito ao princípio da moralidade administrativa. 
Conforme prescreve a Constituição de 1988, o Estado Brasileiro tem como um dos seus objetivos "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV). Reafirmando isso, a nossa lei maior remete aos princípios da igualdade e da justiça "como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". O pluralismo mencionado no preâmbulo da nossa Constituição refere-se à marca da diversidade que compõe a nação brasileira. Somos um povo formado pela mistura de raças, etnias, culturas, religiões e dentro dessa diversidade encontramos alguns segmentos que, por serem minoritários, tornam-se invisíveis nas discussões políticas do país. Como pensar uma democracia se essas pessoas não tem voz para terem seus direitos respeitados? 
O direito à liberdade, à igualdade, à dignidade e à segurança jurídica de alguns segmentos da sociedade, não podem ser reduzidos ou restringidos por se tratarem de direitos fundamentais. Mesmo que a maioria não aceite que esses segmentos tenham o mesmo acesso (quando livres das violações a que o Estado deveria proteger), tais direitos devem ser entendidos como valores inegociáveis, inalienáveis e indisponíveis. 
Hoje, não diferente do que acontecia no passado, barganha-se a liberdade, a dignidade, o direito de acesso igualitário, a segurança e o respeito de uma parcela minoritária em troca do poder político. Não importa quantos cidadãos sairão perdendo nesse jogo se o objetivo de manter a governabilidade e os interesses das próximas eleições forem preservados. Afinal, na concepção deles, esses cidadãos representam a minoria de eleitores e geram poucos votos. A ganância pelo poder e os interesses escusos dos representantes do povo é sempre o que mais importa e parece não haver nenhum problema em sufocar cada vez mais os interesses das minorias que buscam apenas o direito de exercerem sua cidadania plena. 
Uma matéria publicada nessa semana no jornal Estado de São Paulo mostra claras evidências da tentativa de se implantar um regime teocrático em total afronta à laicidade do Estado e ao regime democrático de direito tão duramente conquistado no Brasil. A frente parlamentar evangélica reúne um número crescente de deputados que vem tomando destaque em comissões que tratam de importantes assuntos na agenda de Direitos Humanos, como os referentes aos direitos dos LGBT, aborto, políticas de drogas, a proteção da cultura e das terras dos índios e quilombolas etc. A prova disso, foi a ascensão de um pastor evangélico homofóbico e preconceituoso à frente da CDHM, juntamente com outros parlamentares do Partido Social Cristão (PSC), formado principalmente por evangélicos. A referida bancada também vem tomando espaços na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática na possível busca de mais concessões de sinais de rádio e TV, como forma de captação de fiéis. Além disso, outras articulações vem sendo realizadas junto a outros grupos mais conservadores, no intuito de barrar alguns avanços no campo dos direitos humanos dentro de outras importantes comissões. 
Quais os interesses estão em jogo? Por que eles insistem em distorcer a verdade a respeito da sexualidade humana, contrariando a ciência e impondo suas infundadas crenças? Tudo indica que o combate aos direitos da diversidade sexual vem sendo utilizado como artifício para manipular pessoas que, muitas vezes, pelo baixo grau de instrução, acreditam e aderem às mentiras por eles plantadas com apoio numa interpretação literal e descontextualizada da Bíblia.
Se realmente a preocupação fosse com a família, acredito que eles se ocupariam de combater a exploração e a mortalidade infantil, a pobreza e a violência, como efetivos problemas que desestabilizam diversas famílias brasileiras. Acredito, pois, que esse jogo de enganar as pessoas é a mola propulsora que pode levá-los a ganhar cada vez mais adeptos como massa de manobra para alcançar mais degraus no jogo sujo pela  conquista de mais poder econômico e político. Oportunismo? Acho que esse ponto nem preciso enfrentar quando há indícios mais do que suficientes do vultoso patrimônio levantado por esses que se dizem "pastores" e que participam de arrecadações abusivas do dinheiro e do patrimônio de seus fiéis.
É sabido que o deputado Marco Feliciano pretende instaurar um plebiscito para consultar se o povo brasileiro aceita ou não aceita a união entre pessoas do mesmo sexo. Para muitos, isso seria louvável, pois, as decisões políticas devem ser tomadas com o consentimento da população. No entanto, em um Estado de Direito não se permite negociar direitos fundamentais no campo das discussões políticas, nem se pode fazer um enfrentamento entre vontade de uma maioria e de uma minoria a respeito desses direitos que são essenciais à condição humana. 
Um plebiscito, nesse caso, se enquadraria tal como se levássemos a população do regime escravocrata a decidir a respeito da abolição da escravatura. É possível barganhar a liberdade colocando em risco o destino da liberdade de certos indivíduos ao arbítrio dos interesses de uma maioria contrária àqueles direitos? O que esperar da decisão dos senhores de escravos satisfeitos com a cômoda situação da mão-de-obra escrava quando o regime não estava em crise? Será que eles reconheceriam direitos a esses indivíduos vistos como coisas e que não eram percebidos na essência de sua condição humana?
No Brasil, as pessoas já estão conscientizadas a respeito da sexualidade? A orientação sexual e a identidade de gênero vem sendo discutida abertamente nas escolas? A sociedade brasileira está preparada para discutir os interesses de uma minoria invisível vítima da violência homofóbica que reduz sua autoestima social? Por acaso é ensinado que em países mais desenvolvidos da Europa já se reconhece o direito ao casamento gay e que nada de ruim aconteceu? Se essas indagações fossem positivas tenho a certeza que o povo brasileiro conseguiria desvencilhar-se de uma visão míope a respeito da diversidade sexual, rompendo-se, assim, as fortes convenções sociais dirigidas aos papéis do masculino e do feminino. A sexualidade é um tabu e o tema é escondido do conhecimento de grande parte da população como se não existisse.  
Aqueles que acreditam que a democracia deve ser construída somente pela vontade da maioria esquecem que esta maioria pode tornar-se opressora de certos grupos sociais desguarnecidos de voz e força política. A soberania popular é importante, mas ela jamais poderá sobrepor-se aos valores da dignidade humana, das liberdades, da justiça e da igualdade, como direitos inegociáveis a serem garantidos a todos. Nesse sentido, Alexis de Tocqueville em 1835 nos EUA dizia: "Quando me recuso a obedecer a uma lei injusta, não nego à maioria o direito de dirigir; apelo à soberania do gênero humano contra a soberania de um povo.
Diante disso tudo, tenho a impressão de que estamos repetindo cenas da história da humanidade, talvez com menos crueldade sem que se mande queimar em praça pública os gays, as lésbicas, os travestis, os transexuais, os negros, os pais de santos, os agnósticos e os pagãos como nos tempos da "santa" inquisição que na atual conjuntura não mais seria "politicamente correta". 







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