quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A verdade sobre o casamento e suas diferenças com a união estável


O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
FERNANDO PESSOA

O casamento não é e nem pode ser pensado como direito exclusivo para os heterossexuais. Isso ocorre, porque a referida união tem por objetivo a plenitude da vida em comum. O que está em jogo não é o sexo biológico das pessoas, mas o afeto que as levam à dedicação mútua para a concretização desse projeto. A realidade social demonstra que diversos casais homoafetivos vivem sob o mesmo teto e partilham uma vida comum, tal como acontece com inúmeros casais heterossexuais (vide Censo 2010). No entanto, o Estado vem negando o reconhecimento desse direito, esquecendo-se que o principal objetivo do casamento é garantir ao cidadão o direito de realizar plenamente um projeto de vida em comum. 

Juridicamente falando, é o casamento um contrato decorrente da manifestação de vontade de duas pessoas que buscam na mais solene das cerimônias a segurança jurídica para estabelecer uma "comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges." (art. 1.511 CC/2002). "O casamento é civil" (art. 226, §1º CRFB/88 e art. 1.512 CC/2002), cabendo ao Estado reconhecer esse efeito civil nas cerimônias realizadas no religioso (§2º, art. 226 da CRFB/88).

É indiscutível que para o Estado o casamento seja civil e não religioso, pois, tem por finalidade garantir mais segurança para a solução de possíveis conflitos de natureza patrimonial, como a dissolução (extinção) da sociedade conjugal pelo divórcio ou pela morte de um dos cônjuges. Não podemos de maneira alguma traduzí-lo como uma cerimônia religiosa, fruto de uma tradição histórica. Juridicamente falando, não se deve pensar o casamento civil como uma cerimônia ideologizada na figura de uma noiva que se veste de branco em sinal de pureza, nem mesmo na figura de um varão (esposo) que recebe uma mulher como esposa para constituírem uma família. Deixemos essa forma de pensar para o campo das liberdades religiosas que interpretam esse pacto como um sacramento que se estabelece de acordo com suas convicções e seus rituais. 

O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, desde alguns anos, é realidade em vários países do mundo, como acontece no(a): Holanda (2001); Bélgica (2004); Canadá e Espanha (2005); Suécia e Noruega (2009); Portugal, Islândia e Argentina (2010); Estados Unidos da América, em: Vermont (2009), New Hampshire e Washington (2010), New York (2011).

Muitos poderiam dizer que os homossexuais não estão desamparados diante da possibilidade da união homoafetiva, ou da união civil e parceria civil, como ocorre em outros países. Essa afirmação não corresponde ao ideal de cidadania que deve ter por base a igualdade para a distribuição de direitos, bem como a dignidade humana e a segurança jurídica  a ser conferida também nos procedimentos públicos. Ora, o casamento é o pacto que garante a plenitude da vida em comum, diferentemente das outras formas que prevêm um campo mais reduzido de direitos, como é o caso da união estável e parceria civil na legislação de alguns países. 

O casamento alcança mais segurança jurídica para a comunhão de vida e é o seu alto grau de formalidade que garante aos interessados o objetivo perseguido pela lei da plenitude da vida em comum. É possível estabelecer modelos outros de sociedade patrimonial, como é o caso da sociedade de fato em atividades econômicas, a parceria civil, instituída aos homossexuais em alguns países. No entanto, essas outras formas descaracterizam-se como instituto de família que não mais deve ser vista como fruto da união de um homem e de uma mulher, a exemplo da família estabelecida entre pais solteiros e seus filhos. 

A relação jurídica firmada no casamento exige uma série de formalidades, como é o processo de habilitação para verificação prévia de impedimentos, publicação de edital de proclamas, a manifestação pública da vontade, a obrigatoriedade de testemunhas, um agente específico que celebra a solenidade etc. Por outro lado, a união homoafetiva, proveniente da convivência pública, contínua e duradoura, se perfaz por meio da realidade a ser confirmada em processo judicial de reconhecimento dessa união, ou por meio de escritura pública feita perante um tabelião (pacto de união homoafetiva). 

O casamento é uma cerimônia que afasta, com mais rigor, qualquer possibilidade de vício ou defeito para a realização do projeto de vida do casal. Nesse caso, há uma alteração no estado civil dos cônjuges que passam ao estado de casados, mediante averbação feita no registro civil do nascimento, inclusive, com a possibilidade de alteração do nome. Na união estável, não há mudança de estado civil e o registro de nascimento dos companheiros permanece como antes. 

No campo patrimonial há uma diferença muito relevante entre o casamento e a união estável que se refere aos direitos sucessórios decorrentes da morte de um dos membros do casal. No caso de falecimento de um dos cônjuges casados, o sobrevivente é herdeiro legal necessário dos bens particulares do falecido. Além do direito a partilha dos bens, de acordo com o regime escolhido (comunhão universal ou parcial), o sobrevivente concorre como herdeiro do patrimônio do cônjuge falecido, com o direito de habitação vitalícia no imóvel de residência do casal. Na união estável, o direito é reduzido, pois o companheiro sobrevivente terá apenas o direito a partilha dos bens, de acordo com o regime escolhido no pacto ou conforme a presunção do regime de comunhão parcial de bens, quando não houve a formalização por escritura pública. 

Em outras palavras, no casamento o cônjuge é meeiro, ou seja, tem direito a partilha dos bens de acordo com o regime de bens escolhido e também é herdeiro do patrimônio particular do cônjuge falecido. Na união estável, o companheiro sobrevivente é apenas meeiro e não é considerado herdeiro para concorrer com o patrimônio particular do companheiro falecido. Para a união estável não há previsão legal do direito de habitação vitalícia na residência onde vivia o casal. 

Segundo Zeno Veloso, especialista nessa matéria, a união estável colocou o companheiro em "posição infinitamente inferior com relação à que ostenta o cônjuge" [1] no casamento.

Em um  Estado Democrático de Direito não é permitido privilegiar pessoas ou grupos, nem mesmo restringir o acesso a procedimentos públicos que garantam a alguns privilegiados segurança jurídica mais ampla para a realização de seus objetivos. Os heterossexuais, nesse ponto, levam vantagem, pois, não encontram entraves para o acesso ao procedimento que garante a plenitude da segurança para a realização de seus projetos de vida em comum. Por outro lado, os homossexuais encontram uma série de obstáculos que impedem o acesso ao procedimento que confere a plenitude de segurança jurídica para a realização desse mesmo projeto.  

Como a luta da população LGBT é de combate ao preconceito e a discriminação, a busca do direito ao casamento civil igualitário encontra-se legitimada, como forma de desfazer a discriminação perpetuada pelo acesso restrito desse procedimento aos heterossexuais, e, ainda, como forma de garantir o reconhecimento de suas capacidades. O casamento não é, então, um instituto jurídico privativo dos heterossexuais, devendo ser estendido o acesso sem restrições ou sem obstáculos aos homossexuais que também possuem o direito de concretizar a plenitude de vida em comum. Afinal de contas, qual o prejuízo que o casamento homoafetivo pode resultar à liberdade religiosa se não há qualquer previsão que obrigue as igrejas a celebrá-lo? A resposta dessa pergunta só tem como base uma visão distorcida a respeito da realidade das coisas como forma de tentar impor uma convicção religiosa a qual todos estão livres para professá-la ou não.  

Deixo, portanto, a mensagem da ilustre jurista Maria Berenice Dias: 

"Proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo decorre de uma cultura homofóbica. Admitir o acesso ao matrimônio reflete o direito de os homossexuais serem tratados com igual consideração pelo ordenamento jurídico. A modelação sexual do casamento é livre e personalizadamente feita por cada casal, no contexto e na privacidade da comunhão de vida que lhe é inerente. A doutrina clássica, que ainda, exige para o casamento o requisito da diversidade de sexos, não mais se sustenta frente à repersonalização do direito das famílias, que busca assegurar o direito à felicidade calcado nos princípios constitucionais. Não há impedimentos para que uma relação homoafetiva seja vista como uma relação de amor, compromisso e respeito. Assim, negar a possibilidade de que este relacionamento constitua uma família, implica grave violação aos direitos fundamentais." [2]

[1]VELOSO, Zeno. Do direito sucessório dos companheiros. In DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.) Direito de família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 243.

[2] DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 5 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2011, p. 137.


             

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